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ELOGIO DA CHUVA

Carlos Drummond de Andrade

O dia da chuva é propício à filosofia, ao amor, à rasgação de papéis, à curtição de licor, à preguiça física e mental, a escrever cartas, a ouvir músicas, a telefonar para amigos nos Estados ou no exterior, a cochilar, a beber uma xícara de chocolate bem quente, a jogar cartas ou fazer paciência, a fazer pequenos consertos no banheiro, a lembrar casos de viagem, a não fazer nada.

É extraordinária a relação de coisas que o dia de chuva torna propícias, menos, é claro, sair de casa. O dia de chuva é exatamente o dia oferecido de graça pela natureza para ficarmos em casa, para esquecermos a rua, os negócios as obrigações. Em vão o calendário  o assinala com impressão em negro, lembrando que se trata de dia útil. A misericórdia do tempo imprime-o vermelho, como os domingos, feriados e dias santos.

O dia de chuva é propriamente um dia santo, em que devemos guardar a paz interior e a paz com relação aos outros, fugindo de qualquer tentação de agir, influir, concluir. O silêncio ocupa nele um espaço especial, feito de doçura e tranquilidade. Por isso mesmo não se deve escutar música de sonoridades fortes, sinfonias de largo fôlego heroico ou monumental. A música nesse dia há de ser de câmara, e pede-se aos familiares que não falem alto. Também não precisam sussurrar. Não há cochichos nem segredos no dia de chuva. Há a atmosfera de quietude que banha todas as coisas, tornando-as mais simples, mais delicadas, sobretudo mais comunicantes com a gente.

A chuva lá fora leva-nos a descobrir a discreta excelência desta mesa, em que acostumáramos a botar tanta coisa que nem víamos mais ou seu tempo antigo e prestimoso. Vamos desembaraçá-lo de livros, lápis, pesos de papel, espátulas, e alisar a madeira camarada, fiel durante tamanha fatia da vida.

É olhar para as paredes também. É hora de redescobrir que os quadros que um dia instalamos, orgulhosos de exibir a tela ou a gravura que encantavam o crítico Florêncio quando ele nos visitou. Não só o crítico, as visitas em geral ficaram encantadas. E nós, com o tempo, nem reparávamos nelas. A ingratidão da pressa e do costume tornou praticamente invisíveis as obras de arte, poucas mas boas, que conseguimos reunir ao longo da vida. E a chuva, essa benfeitora, aponta-as com o dedo molhado, dizendo: “Olha.”

Olhamos e nos sentimos outra vez donos de novo, de primeiro dia, felizes sem arrogância. Tão bom, ressentir a presença de cada objeto que nos acompanha dia após dia e não reclama nada, salvo um pouco de limpeza ou verniz. Um arsenal imenso de coisas que vive à nossa disposição tem a sua utilidade, a sua beleza comprovada, porque a chuva, fustigando as ruas, nos conduz a essa doce contemplação dos objetos caseiros, em que até uma caçarola: serão menos flores do que as de jardim, ou fazem papel de representantes delas?

Bem, o capítulo da leitura de livros tem importância particular no dia de chuva. Todos possuímos um bocado de volumes condenados a jamais serem abertos. Jamais, não. Se a chuva nos deixa em casa, é para eles, os intocados, os virgens, que a mão se dirige. Aí está esse poeta espanhol do século XV, Rodrigo de Cota, comprado em edição de bolso, nunca lida. Abre-se ao acaso, e é o longo diálogo entre o amor e o velho, em que  este, vencido por aquele, exclama: “Siento raiva matadora,/plazer ileno de cuydado;/siento fuego muy crescido, siento mal y no lo veo;/sin rotura esto herido:/no quiero ver partido,/ni apartado de deseo”.
Leituras de dia de chuva: um gosto diferente daquele que tem a leitura em dias comuns.

E assim vamos navegando dia afora, sem preocupação de relógio, a ponto de parecer que o tempo acabou como categoria obsessiva de toda a vida. Não há pressa, porque a chuva elimina as providências que devemos tomar. A agenda, com seus deveres irretratáveis, foi derretida sem lástima, direi até com prazer. Porque há prazer na dispensa de uma obrigação, ou no seu adiamento: fraqueza (ou defesa?) da mente humana. Até os maiores trabalhadores, os que têm compromisso moral com a pátria e a consciência, experimentam secreta delícia em frustrá-lo por um dia, intervalo destinado à ociosidade angélica.

Acontecimento importante, que ocorre no recolhimento domiciliar da chuva, é a demissão do sol, que de bom grado assinamos. Esquecemos seus benefícios e esplendores, passamos muito bem sem ele. Se voltasse no meio da tarde, seria mal recebido. A chuva ficou sendo para nós uma sóror franciscana, de amada conveniência.

Mas tudo isto, agora me envergonha dizê-lo, são prazeres de classe média relativamente folgada, que se permite faltar ao serviço sem medo de desconto ou cara feia do chefe. Desfrutá-los não é para qualquer mortal. Até a chuva é discriminatória e parcial, injusta para muitos, privilegiada
para uns poucos. Perdoem esta louvação médio-classista da chuva de quinta-feira passada.

Carlos Drummond de Andrade
In: Prosa Seleta Carlos Drummond de Andrade
[Moça Deitada na Grama]
Editora Nova Aguilar, 2003, em um volume,
p. 1138 – 1140

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